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15/03/23

Quando Giovanna me contou, primeiro achei que estivesse de brincadeira. Depois quando percebi que era real, mandei essa mensagem:

“Eu não encontro palavras. Dizer que vai ficar tudo bem tem uma penca de gente que vai falar. Espero sinceramente, profundamente que fique. O mais breve possível. Duas décadas e eu ainda não consegui, mas você é imensamente melhor e mais forte. Vai tirar de letra. Te amo infinitamente! Tomara que você sinta! E que o seu incondicionalmente seja tão belo e perfeito quanto o meu é. Você é tudo pra mim! Obrigada e me perdoe, quando puder. 🖤”

Não que a vida não seja um looping constante de recalcular rota. Sempre é. Mas essa surpresa me pegou de jeito. Continuei com as obrigações, com a rotina, porque a vida adulta não permite que nos recolhamos a  qualquer momento, quando convém. Isso é luxo de alguns, jamais de uma mãe solo que carrega também a casa e a mãe nas costas. Segui no modo automático, apenas de corpo presente. Desconectei todas as redes sociais. Arquivei as conversas no aplicativo, deixando somente dos filhos e das escolas para emergências em horário comercial. Ficar totalmente off não é para quem quer, é para quem pode. Se ausentar necessariamente transfere mais peso nos ombros de outro alguém. Eu sou a pessoa que acumula pesos, não a que produz conscientemente para terceiros. Esperei para desabar apenas no final de semana seguinte depois dos meus filhos terem ido para casa do pai. Umas 36h seguidas de choro em posição fetal. Sem luz, comida, banho, sono… Levantei, recebi minhas crias de volta, o modo piloto automático seguiu por mais duas semanas. 

O que doeu não foi nadinha sobre a Giovanna. Foi sobre mim. Sobre as minhas vivências, minhas dores. Reabri e revivi tudo que havia guardado numa gavetinha muito bem escondida embaixo de muitas camadas, muitos muros de auto proteção.

Aos 17 anos fiquei grávida. Minha vida parou ali. Não era mais nada sobre mim. Guardei meu eu no bolso e vivi por nós. Não faria nada diferente. Tudo foi por instinto, foram meus ponderamentos. Foi sobre respirar, olhar friamente (mesmo com tudo fervilhando o tempo todo), analisar o que estava acontecendo e fazer o que tinha que ser feito. Prestar vestibular, morar sozinha, mudar de emprego. Fim da fila, fim da fila, fim da fila. Viajar, descansar, passear. Cortar da lista! Não tinha base familiar e me dava muito mal com todos eles. Engolir tudo e seguir em frente. O genitor não compareceu. Fazer sua parte, a parte dele. Esperar a conta chegar. Ah, mas não é comigo que acerta. Eu estou em dia. Ufa!

Tenho muita implicância com o termo “o tempo cura tudo”. Acho que ele não cura nada. A gente é que decide seguir e dia após dia, reorganiza as coisas, as prioridades, vai sobrevivendo, tira do foco aquilo que mais lhe dói no momento e aprende viver apesar de. Aquela dor não cura, ela é amenizada. O machucado cria casquinha, cria cicatriz e fica quietinho por bons períodos. Até que vem lâmina afiada, rasga a pele, abre a carne e sangra novamente. 

O que me derrubou mesmo foram as lembranças. As memórias doloridas. O eu no bolso. Os pedidos silenciosos de socorro. As dores para pedir ajuda, asilo, auxílio e as ligações não atendidas. E as ligações atendidas, as palavras doces e atitudes não condizentes. Hora de silêncio estrondoso de costas viradas. Hora falas, falas e mais falas vazias. Ainda não consigo saber o que feria mais. 

É um pouco conflituoso o que a modéstia faz com a gente. Um monte de gente passa por isso, é comum, é normal. Ao mesmo tempo, UAU! Eu era uma menina, sozinha, gerando uma vida, gerenciando nossas vidas, parindo, amamentando, lidando com hormônios, ganhando um corpo novo, transformado, tomando decisões importantes o tempo todo, batalhando, sobrevivendo. Sozinha. Sozinha. Sozinha. Sem tapinhas nas costas, sem carinho no rosto, sem massagem nos pés. Com dedos apontados, opiniões inconvenientes e um esmagador peso de obrigações inadiáveis. 

Sempre tive medo dela ter o mesmo destino que eu, engravidar na adolescência, sem ter conquistado suas coisinhas, estudos, trabalhos, sonhos. Ela fez 17, passou. 18, passou. Com 19, aconteceu. Não é que não possa conquistar tudo que deseja, com filho. É que sei, senti, vivi, que tudo fica totalmente mais difícil quando você tem que pensar “no bem geral da nação” antes de pensar no seu próprio eu, nos seus desejos, suas vontades. Tive minha primeira filha totalmente sozinha. Depois tive meus dois filhos com um pai tecnicamente presente. Sei como é sentir solidão estando só. Sei como é sentir solidão estando acompanhada. A maternidade sempre me foi avassaladora. Mesmo sendo muito otimista, sei das dificuldades que minha bebê vai enfrentar. Eu enfrentaria todos os percalços em seu lugar só que agora, mais uma vez, não é sobre mim. Preciso aceitar o meu lugar. E torcer para meu cantinho na janelinha ser mais confortável do que o da direção que agora não me pertence mais. 

Uma passagem bíblica favorita está em Marcos 12 41-44. Nela, muitas vezes encontrei conforto. É um colo/ abrigo invísivel onde me refugiei tantas vezes que precisei fisicamente e só encontrei um massacrante vazio ao redor. 

A oferta da viúva 
Jesus sentou-se perto da caixa de ofertas do templo e ficou observando o povo colocar o dinheiro. Muitos ricos contribuem em grande quantidade. Então veio uma viúva pobre e colocou duas moedas pequenas. Jesus chamou seus discípulos e disse: “Eu lhes digo a verdade: essa viúva depositou mais que todos os outros. Eles deram uma parte do que lhes sobrava, mas ela, em sua pobreza, deu tudo que tinha”.

Estou em paz com a novidade de ser avó. 
Quero ser o suporte que não tive.
Me deslumbro com Giovanna, mãe.
E anseio o encontro com Miguel. 
Vem, Miguel! ♥️

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Show Racionais MC´s e Dexter 12-22

Tenho um delay gigante no meu processamento de dados. Ainda não consegui absorver a completitude daquele momento. Aquela Alinne que ia pra escola no ensino fundamental com a camiseta preta com a cruz enorme na frente e frases potentes nas costas, nunca acreditou que era possível viver essa experiência. Nem um cd original com o encarte era possível. Escrevia todas as letras de todas as músicas no caderno. Pegava trecho por trecho pra ficar analisando. Enxergava meus semelhantes e os menos favorecidos que a sociedade faz de tudo pra apagar. Sentia a realidade que vivia (vive!) representada ali muito mais que nas fantasias que a tv mostrava. Eu lembro de no começo desse ano, desejar com todas as forças, poder ir num show desses caras com a certeza que nunca iria. E então aconteceu. Naturalmente não foi tão simples. Ir sozinha. As crises de ansiedade. O ataque de pânico na fila. Me acolher invisível. E também conseguir o lugarzinho bem na frente. Ficar a um metro do palco. Sentir os caras se divertindo entre amigos e PERTENCER. Na saída, sentada na calçada vendo o nascer do sol e passando Brown dirigindo seu carro, vidro claro e baixo, conversando com geral. Dexter também, atendendo o pessoal, fazendo foto, do carro com a família. Eu ainda vou viver naquele dia pelo resto da minha vida. Que dia, meus amigos, que dia!

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20/11/22

“Cabelo horrível. Tem que cortar esse cabelo.” Todas as vezes que eu olho no espelho, ouço essa frase que minha mãe sempre me falou. Não estou exagerando. 100% das vezes que olho no espelho, eu ouço essa frase novamente. Só que agora, agorinha agorinha, bem recente, tenho contornado a situação. Eu ouço e me repreendo. Eu ouço e digo um sonoro não. Eu ouço e reafirmo que é belo, é perfeito, é como deve ser. O reverencio, o acarinho, o agradeço. Sinto os fios, as texturas, as cores. Amo o mesclado de branco. Quando quero, aliso um pouquinho. Por querer mesmo e não por imposição, inquietação em domar seu volume. Por enquanto não desejo mudar sua cor, esconder a idade. Hoje não. Hoje ainda não. Esse negócio de entender as pessoas, respeitar as pessoas é necessário, inquestionável. Mas tudo em excesso é ruim. Até o bom em excesso é ruim. Nessa de respeitar a visão da minha mãe, de entender que é o jeito dela, que é dela, me quebrei todinha. E me reconstruir todo dia, todo tempo, é exaustivo demais. Ela nunca gostou de cabelo grande, cabelo não liso, cabelo não preto. Ok. Sempre criticou cabelo não dela. Sempre ficou muito confortável em esnobar o meu. Cabelo bom é o dela que nem precisa de shampoo, nem precisa de alisar. Quando eu era pequena e pedia condicionador, era um absurdo eu querer essas frescuras. Devia ser inveja do irmão que sempre teve o shampoozinho de neném dele separadinho de todos por causa da irritação nos olhos. Que heresia eu não querer o 2 em 1 que a casa toda usava. Veja só, uma menina, criança querer ter voz e não cortar o cabelo sempre Joãozinho igual o do irmão. Depois não querer ter mais franjinha que era cortada em casa e ficava sempre em ziguezague. Ia crescendo e deixando o cabelo crescer. Até chegar na cintura. Cabelo horrível. Tem que cortar esse cabelo. Repetia-se todo dia essa frase. Até que veio a maternagem. Fui convencida de que o cabelo na cintura era mesmo horrível e tinha que cortar já que agora teria trabalho com a bebê e não poderia perder tempo cuidado daquele cabelo horrível que tinha que cortar. Cortei nos ombros. Me perdi de mim. Mãe é só cabelo preso, coque. E olha só. Meu cabelo ainda continuou sendo horrível e precisando de cortar. E depois ainda horrível precisando de cortar e de pintar. De qualquer forma, em qualquer tempo. Sempre horrível precisando de cortar e de pintar. E por mais que eu saiba que não devo me abalar com a opinião de uma pessoa que não eu, adivinha!? Eu me abalo. Sempre. E como sempre me foi muito fácil me anular e cuidar de terceiros, me anulo e blindo os meus filhos. Meu caçula tem o cabelo ondulado lindo. Sempre, pra minha mãe, precisa cortar. Eu elogio e deixo ele escolher o que fazer com o cabelo dele. Meu do meio tem cabelo liso. Agora está grande. Comentário sexista nem entra no caso. Eu elogio e deixo ele escolher o que fazer com o cabelo dele. Minha mais velha, tem o cabelo liso também e sempre gostou dele grande.  Eu elogio e deixo ela escolher o que fazer com o cabelo dela. Ela faz tempo que escolhe sozinha. Minha tarefa sempre foi reforçar que é lindo e ela não precisa cortar se não quiser. Tínhamos umas rusgas por tintura quando novinha. Agora ela quem manda mesmo. E mesmo com a maternidade, nunca vou dizer a ela que cuide primeiro do bebê e não de si. Não quero que se perca como me perdi de mim. Nem pelo cabelo e nem por nada mais. Quero que os três nunca pensem em cabelo. Tenho um desconforto enorme em salão de beleza. Agora eu corto o meu cabelo sozinha em casa. Vontade de ficar careca vem e vai. Há uns anos eu joguei fora o espelho do meu quarto. Há uns meses eu tive vontade de comprar um espelho novamente. É tanto conflito aqui dentro. Cabelo é só cabelo. Um dia eu vou consegui olhar no espelho e ouvir silêncio. Hoje eu já consigo depois de, acolher. Que bom! 

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31/08/22

Estava fazendo umas fotos em meu ateliê quando botei reparo na minha plaquinha que ganhei do Youtube pela marca de 100 mil inscritos no canal. Ela sempre está ali na parede, perto da mesa de trabalho, bem visível. É uma recompensa bacana por tanto esforço e motivo de alegria. Os filhos mostram orgulhosos para todo mundo. Tenho um certo receio sobre isso.

Reconhecer as próprias conquistas. Um ponto que preciso trabalhar. São só números. Não podem nos definir, nos rotular. Mas também não podem ser ofuscados por modéstia. O criador de conteúdo precisa fazer malabares com o algoritmo. Quando pensa que conhece o jogo, as cartas embaralham novamente e tudo muda. O tempo todo! Precisamos avaliar com cautela quais as batalhas que queremos enfrentar. Meu crescimento no Youtube foi totalmente orgânico. Reconheço que não sou camaleoa e não me adapto a todas as mudanças diárias que acontecem. Continuo formiguinha enquanto as grandes equipes fomentam boa parte ali. As vezes acho que me acovardo. Outras tantas, sei que dou meu melhor e coloco o pé no freio quando preciso tomar fôlego. Gostaria de crescer mais e mais. Tenho outras prioridades na vida pessoal. Luto, corro, respiro, desisto, recomeço! E de novo. E de novo. Enquanto me fizer bem. Por hora ainda faz sentido. Que bom! 

Gostaria de deixar algumas reflexões sobre internet, redes sociais, algoritmo. E nossa sanidade. Ali falei como criadora de conteúdo. {De uma forma geral já que também alimento outras redes, inclusive aqui, blog, que já reinou há eras, hoje são raros.} Aqui, como consumidora de conteúdo digital. Acredito que somos nós quem criamos nossa timeline. Nós que somos responsáveis por isso. Cada um. Claro que no caso das crianças, a conversa é outra. Mas como adultos, temos que saber que fazemos escolhas o tempo todo e não escolher também é uma escolha. De forma geral, o mundo funciona com o cada um por si. Cada um por seus próprios interesses. Ai cada um escolhe seguir por si ou se juntar aos semelhantes e lutar juntos. Por seu grupo ou pelo todo. A decisão inicial é sempre pessoal. Você escolhe, escolher ou ser massa de manobra. Para mim, o algoritmo é ótimo somente no aplicativo de música que define meu flow. Vez ou outra, reajusto. Quase sempre flui bem. Eu escolho o que quero consumir! E a hora de tirar meu time de campo. Agora no Instagram tem opção de organizar seu feed com seguindo e favoritos, em ordem cronológica!? Sabemos que interagir com o que você gosta, faz aquilo crescer. Ou deixar o algoritmo decidir tudo por você. Assim como nós, e tudo mais, os aplicativos precisam se atualizar com frequência. Uma época o que agradava um grande número de pessoas, eram as salas de bate papo. Depois os fotologs. Os blogs. As redes de amizades. De textos curtos. De imagens. Hoje cada um deles quer abranger o quanto puder. Há uns anos o Snapchat estava em alta. O Instagram precisou trazer os filtros pros stories para não ser engolido. Agora o Tiktok está em alta e todas as redes estão incluindo os vídeos curtos para não serem esquecidas. Todos vão se adaptando. Imagino que tem espaço para todo mundo, para todos os gostos. Particularmente, amo blog. Sou apegada no Twitter. E no Instagram. Pode ser porque gosto de ler, escrever e de fotografia. Amanhã posso não gostar mais tanto assim. Eu mudo. As pessoas mudam. Isso é bom! Mais importante: tem que ser leve e divertido. Senão, não use! Usemos com consciência! O aplicativo e a vida! 

🖤
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10/07/22

Não consigo lembrar onde ouvi, ou li, mas a frase me fez explodir a cabeça e desde então fica ressoando todo dia, o tempo todo. 
“Meus pais sempre me falam que eu não fui planejado, que eu não deveria ter nascido. E deve ser esse o motivo por eu nunca ter me sentido em casa nesse mundo. Sou aquela visita indesejada. Sou o intruso. Eu não deveria viver aqui nesse planeta.”
E pra mim fez tanto sentido pois é exatamente o que sinto. Como sempre me senti. O que sempre ouvi. Que ouço até hoje. Sem sutileza, sem compaixão. Dói. Rasga. Sangra. É aquela ferida que nunca cicatriza. E quando parece que há cicatriz, a pele abre novamente, revira toda a carne e fica inflamado, infeccionado, putrificado. 
Se o assunto surgir todo dia, todo dia minha mãe confirma. Meu irmão nunca imaginou que essa “brincadeira” pudesse doer por que nele nunca doeu. E ele adora relembrar, reafirmar, desdenhar. Na frente do meu pai, jamais, mas ele também tinha muitos fantasmas e um grande abismo entre nós. 
Isso me fere principalmente depois de me tornar mãe. Nunca faria isso com um irmão, menos ainda com um filho. Sou totalmente a favor do aborto apesar de imaginar que nunca faria. Nunca me passou pela cabeça. Fui mãe solo, adolescente. É de uma insanidade sem limite. Absurdamente insano. Intensamente insano. Nem por um segundo achei que minha filha foi um erro. Nunca! Nunca sequer fiz referencia. Me dói imaginar que possa alguma vez ter passado isso pela cabeça dela ou dos outros dois filhos. Me tranquiliza saber o que sinto, o que sempre senti. Reafirmar a valia deles e o amor, fundamental! 
Soma-se o não pertencimento ao seio familiar com os relacionamentos fracassados, bingo! Minha inadequação e inabilidade social… Nunca me senti parte desse mundo! 

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Desejos

Eu quero descobrir quantas cores tem seus olhos.

Eu quero massagear o seu rosto até a ruguinha apreensiva do meio da sua testa desaparecer.

Eu quero entrelaçar os meus dedos na sua barba.

Eu quero a conchinha por trás para cheirar o seu cangote.

Eu quero contar quantos palmos que tem as suas costas.

Eu quero fazer carinho na sua panturrilha com o meu pé.

Eu quero contar as pintinhas da sua barriga.

Eu quero saber quais são seus livros, séries, filmes e músicas favoritas.

Eu quero ouvir você listando todas as cidades que quer conhecer e os países que quer morar.

Eu quero sentar no meio fio com você e virar a noite conversando.

Eu só queria que você me quisesse…

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3.7 chegou!

Eu tenho sentimentos ambivalentes muito conflitantes sobre aniversários. No do ano passado, eu sabia que era o último. Tinha planos, metas e certezas. Esse, tenho ressignificado tanta coisa, que me convenci experimentar deixar fluir. Como diz na canção do Iron: RUN, LIVE TO FLY, FLY TO LIVE, DO OR DIE! 

Todas as minhas lembranças de infância são ruins. Todas! As vezes eu cavo, cavo, cavo. Busco nas minhas profundezas, algo de bom, algo que aqueça o coração. Quanto mais eu lembro, mais dói. Então eu recuo, enterro novamente e desisto. Com aniversário, não é diferente. 

A memória de aniversários até uns onze ou doze anos (não sei direito, não tem registro, não tem foto), é do café da manhã na padaria. Era somente eu, meu irmão e meu pai. Mãe nunca se importou. Era a melhor refeição do ano. Único momento em que eu me sentia gente. Eu podia escolher o que comer e o que beber. Eles acompanhavam. No do meu irmão, a mesma coisa. Ele escolhia e a gente acompanhava. Sempre na mesma padaria. Eram os melhores minutos do ano. O tempo parava ali. Normalmente escolhia misto quente com guaraná. A gente não saia nunca. Esse era “o” passeio! A gente também passava muito aperto e esse era o auge do luxo, a experiência gastronômica perfeita.  

Só que mesmo a melhor memória, não esconde o que tinha por volta. Os dias antes eram de muita ansiedade. A gente torcia muito para o pai não beber. Sabia o inferno que era o dia que ele bebia. E ele bebia todos os dias. Ele também tinha epilepsia. Ou ele estava bêbado, ou ele tinha incontáveis ataques no dia. Não tomava medicação porque não poderia beber álcool. Um ciclo intenso e sem fim. Enquanto éramos crianças, ele conseguiu ficar sóbrio nas manhãs dos nossos aniversários a tempo de nos levar na padaria. Só que nunca conseguia voltar sóbrio da padaria conosco. Não conseguia finalizar a refeição sem pedir a branquinha. A gente via nitidamente o conflito dele. E voltávamos para casa tristes, com as lágrimas silenciosas, abraços nulos e afeto zero. Mais tarde o pai chegava com todas as outras dificuldades e a vida real rasgava todas as ilusões de pertencimento, de se sentir especial, de poder ser feliz. 

Outro ponto importante é que nos anos 80 e 90 não tínhamos internet, nem mesmo telefone. Nunca tive muitas amizades. E minha mãe faz aniversário um dia depois de mim. Eu sempre recebi parabéns no dia seguinte porque as pessoas deixavam juntar e aproveitar a viagem. Mais ainda, meu irmão faz quinze dias depois. Então a outra metade; eu recebia nesse dia. 

Conforme fui crescendo, pouca coisa mudou. Melhorou com as redes sociais. Eu que nunca soube lidar direito. Será que estão lembrando de mim porque sou importante para elas ou estão automaticamente respondendo a notificação do aplicativo!? Meu ex marido costumava comprar um bolo para mim. Era ótimo. Intimista. No último ano que estivemos juntos, ele comprou também. Só que a gente estava separando. Não estávamos conversando direito. Na noite anterior ele nem dormiu em casa, nem teve bom dia, nem olhou na minha cara no almoço… A noite um bolo. Foi bem esquisito. Essa coisa de esperar o ano todo por um único dia. É insano! Não quero nesse dia o que não tenho nos outros. Ontem, eram onze horas, estava cozinhando (sim, faço almoço cedo), minha mãe levantou (sim, ela acorda tarde), como de costume, dividimos a cozinha sem uma palavra, sem cruzar o olhar. Então sendo aniversário, terá um sorriso e um abraço. Essa parte eu odeio! Eu sequer costumo dar presente nesse dia. Prefiro presentes avulsos em dias comuns. Presentes inesperados. Momentos, lembranças, conexões. Claro que é gostoso ganhar presente! Toda minha infância foi sem presente. Minhas tias faziam bolinho para mim. Dividia com a mãe. Era muito gostoso. Nos últimos anos também ganhei bastante carinho de gente que amo. É maravilhoso! Sempre mantendo a máxima do “não esperar para não se frustrar”. Que é bem triste, convenhamos.

Um estalo que me fez repensar a vida toda foi o dia que enterrei meu pai. Nunca me senti tão sozinha. Percebi que não tenho uma rede minha. Tudo que construí foi pelos outros. Pela família que tentei criar. Já estava em crise com o marido. Ele pouco esteve ao meu lado. Não tinha nenhuma amiga ali. Tinha toda a família, foi essencial! Mas todos ali estavam chorando, cada qual, sua própria dor. Eu não tive ninguém para chorar minha dor comigo. Meu irmão recebeu vários amigos. Minha mãe recebeu vários amigos. Meus familiares receberam seus amigos. Eu estive sozinha. 

Outro dia numa conversa, me perguntaram o porquê de eu não beber. Respondi que pelo histórico do meu pai e pelas crianças. Que elas já não tem pai presente, que eu sou sozinha e sou tudo que elas tem. Elas precisam de mim alerta cem por cento! Não posso relaxar. Recentemente tive uma crise de labirintite, fiquei muito ruim, continuei dando conta de tudo de modo sobrenatural. Até que desabei. Precisei tomar uma medicação forte que me apagou. Eu nem sei se alguma outra vez eu dormi tão bem, acho que nunca. Acordei renovada. Foi bom só até saber que meu caçula passou mau a noite e a mais velha que o socorreu. Fique ruim em dobro com o peso da minha falta com um e com a carga que ficou na outra. Mãe não tem paz nem para ficar doente. Muito menos para morrer. Quem vai cuidar? Ninguém vai usar o “incondicionalmente” como eu. E o que será da cabecinha deles? Poderão aguentar isso da mãe? Como garantir que não sentirão culpa apesar de não terem. 

Eu poderia dizer que vivia no piloto automático. Mas bem pior que isso. Eu sempre vivi por obrigação (não vou estender esse ponto pois daria mais 3 capítulos, no mínimo!). Quando chegou a pandemia, depois do susto me veio um alivio esperançoso secreto. Senti que teria a chance de partir, quietinha, sozinha e com um bom álibi. Só que o sentimento foi substituído pelo pânico de não ser eu. De eu perder alguém que amo. Eu não suportaria viver tendo perdido um filho. E ai eu pirei! Senti a pandemia da pior forma possível. Muito pesado e solitário, como foi para muita gente…

Em outra conversa, um amigo contou que via sua mãe não como uma pessoa, sim como um espectro. Ela sempre estava presente, sempre ali para eles porém nunca estava realmente ali. Isso me atravessou de uma forma dolorosa. Percebi que era assim que minha filha sempre me viu. E sempre tentou me alertar mas eu nunca pude escutar. A pressão da vida adulta, das responsabilidades, da maternagem, cegam qualquer pessoas. E se você não tem apoio, você sucumbe. 

No ano passado minha filha completou dezoito anos e isso foi um outro grande divisor de águas para mim. Como se a maioridade dela, me libertasse para voltar a ser eu, por mim. Mesmo com os meus filhos ainda criança. Era como se eu tivesse passado de fase. E pudesse respirar. A sobrecarga da maternagem solo é uma coisa imensurável. Cruel ao extremo! Eu me vi podendo pensar em mim. Eu desamarrei minha mãe das minhas costas também. Eu agora só tenho nas asas dois filhos. Sem marido, sem mãe, sem filha mais velha. Continuo disponível só que agora com poder de escolha em me colocar no podium as vezes. 

Há um ano eu estava muito destruída. Noites e mais noites em claro; incontáveis crises de pânico e ansiedade. As noites eram desesperadoras e pela manhã eu fingia estar tudo bem. Colocava minha capa de mãe e seguia. Por dentro tudo estragado. Comia as unhas até sangrar. Me fechava para as pessoas pois achava que já tinha tido minhas oportunidades de relacionamento e que para o resto da existência, deveria aceitar a rejeição. Cumprir a missão de criar os filhos. E quem sabe um dia poder partir. Porque é certo que eles irão. Irão desbravar o mundo, irão viver suas próprias vidas, seus próprios desejos e ambições. E se hoje que apenas um filho voou, já não sei o que resta de mim, imagina quando forem os três. É o natural e é inevitável. O cérebro entende. O coração…

Eu não olhava para o céu. Achava normal, achava que amanhã tem igual de novo. Bobagem. Ha alguns meses eu comecei olhar para o céu. Comecei ver beleza ali. Comecei admirar e me encantar com cada detalhe. Eu virei a pessoa obcecada pelo céu. Apaixonada. Tenho dependência de ficar observando todo dia. Meu olhar mudou para muita coisa. Abri as portas do meu casulo. Tenho saído para respirar com frequência. Tenho necessidade de conversar sem o assunto ser filho. Voltei me enxergar como mulher, como pessoa. Eu nem estou saindo mais dos grupos do WhatsApp, estou respondendo todo mundo em poucas horas, não mais em dias, semanas. Deus está vendo o quanto tenho me esforçado para socializar! Parei de dizer aquele não automático para tudo. Disse mais sim nos últimos meses do que na vida toda. Ainda sou bem malvada comigo porém sempre paro para refletir depois e até já aprendi me pedir desculpas.

Dizer sim para a vida, não faz ela ser fácil. Faz ser menos dolorosa. Continuo quebrando a cara periodicamente mas o que compensa é que tenho me recuperado mais rapidamente e com menores sequelas. Nem sempre, é verdade! O mínimo que for, já é lucro! Agora ver o que me espera nos 37. Para o dia, pela primeira vez, planejei algumas coisinhas que eu gosto de fazer com a minha doce companhia. Nem vou falar em voz alta para o universo não ter chance de puxar o tapete. 

Estou pronta! Bora!? 

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04/05/22

Eu tenho o hábito horroroso de menosprezar tudo que é meu e engrandecer tudo que é do outro. Pra mim é natural vibrar com as vitórias dos outros, com as conquistas dos outros, com as evoluções dos outros. Tenho muita facilidade em me compadecer com erros, defeitos, fraquezas dos outros e o extremo oposto com os meus. Minha síndrome impostora é cruel. Quando eu acho que me desvencilhei, percebo que estou presa, estática, submersa em seus terríveis tentáculos mais uma vez. 

No último fim de semana vivi uma experiencia fantástica. Única. Transcendente. E o que eu fiz? Diminui! Fiz alguns stories mas não queria fazer uma postagem. Achei sem graça, sem importância. Tanto faz. Ninguém se importa. Nesse momento eu quero sim registrar. Quero sim engrandecer aquele fato que foi tãooo mágico e importante para mim. Que aconteceu do jeitinho que precisava. Foi perfeito. Sem defeito! 

A Pitty é minha artista favorita da vida! Desde a primeira vez que ouvi, a primeira vez que vi. Seu som é o meu preferido, sua imagem a minha idealização. Suas composições, motivacionais. Sua voz, maná. O conjunto da obra, impecável! Seu primeiro álbum saiu no ano em que eu completei 18 e estava gravida. O ano mais difícil da minha vida. Minha menina ouvia desde a barriga. Cantava desde pequenininha. Meus meninos ouvem, cantam e gostam também.  É o tipo de pessoa que eu nem queria conhecer pois prefiro manter no pedestal. Não gostaria de borrar nem que minimamente sua imagem com a humanidade que ela tem. Ver suas imperfeições, dores, dissabores. Prefiro manter como um ser supremo. A Pitty sempre me salvou e continua me salvando todo dia mesmo sem saber da minha existência.

Tinha vontade de ir em um show dela mas nunca achei que fosse algo para mim. Muito fora da minha realidade. Na verdade só havia ido em um show na vida, e foi recente, há 3 anos. Sandy e Junior, um ato de ousadia, experiencia deliciosa com a minha prima/ irmã. Não me achava merecedora. Até que… Surgiu a oportunidade. Pitty perto da minha casa. Num lugar bem gostoso que eu sempre quis ir. Ingresso super acessível. Mais Nando Reis. Eu nunca me perdoaria se perdesse. Queria companhia, obviamente. Não consegui. O medo nem era a solidão, isso já aprendi lidar e quase sempre, administro bem. O pânico era da hora de vir embora sozinha. Realmente foi a parte mais difícil! Vencida com sucesso. 

O dia do show foi de extrema ansiedade. Noite anterior em claro. Levantei cedo para rotina com os filhos. Tentei cochilar a tarde para ir descansada. Em vão! Coração acelerado a ponto de pifar o dia todo. Sem acreditar que o sonho iria se realizar. Eu iria ocupar o mesmo espaço que minha ídola. Iria ver e ouvir pessoalmente. Eu sou uma pessoa introvertida e utilizo algumas técnicas de invisibilidade. Não queria chegar muito cedo. Nunca quero estar em evidencia. Nunca quero aparecer. Lugares com muitas pessoas são bons para passarmos despercebidos. (Só quem já teve costume de chorar no metrô de SP entende como quanto mais gente ao redor, menos as pessoas se enxergam) Li na plaquinha que a capacidade do local era de quase 3 mil pessoas, pouco comparando com o outro show que fui e tinha quase 50 mil. Ainda assim era muita gente! O lugar bonito, amplo, com bares, chalés, lago, árvores. O palco e a área da pista cobertos com um telhadinho rústico super charmoso. O nome antigo era Kazebre. Faz jus!  Ainda estamos vivendo uma pandemia, permaneci com a máscara o tempo todo. Só observei mais 2 ou 3 pessoas com ela também. Tive vontade de tomar uma bebida mas decidi manter a atenção plena e diminuir a vulnerabilidade especialmente por estar desacompanhada. Não troquei uma palavra com pessoa alguma. Circulei com facilidade até me posicionar na pista para aguardar o inicio das apresentações. 

Já tinha bastante gente quando a primeira banda abriu a noite. Engrennagem. Que deliciosa surpresa! O som muito bom! Os caras com uma energia e entrega contagiantes. Tocaram musicas deles e de outros. A galera curtiu muito! Depois de uma pausa e mais gente na pista,  veio o Nando Reis. Pontualidade impecável, até adiantou uns minutos. Ponto positivo. Melhor que isso só o fora bolsonaro que ele lançou no meio da apresentação. Um artista experiente, muito desenvolto e entregue. Todas as canções cantadas do inicio ao fim em conjunto com a plateia. Eu nem sabia que gostava tanto dele. Foi maravilhoso! O cansaço já batia no intervalo que antecedia o ponto alto da noite. Quando deu a hora, a galera em polvorosa já aclamava: “Pitty, cade você, eu vim aqui só pra te ver.” Depois de mais 15 minutos, o som começa. Foi ai que minha alma parecia ter saído do corpo. Os pés saem do chão. A multidão toda é empurrada para frente. Medo de acontecer um acidente. Tudo aquilo é insano. Os sentimentos explodindo. Soltei o freio e me permiti ser levada pelo fluxo. Todos estávamos na mesma vibe. Íamos para frente, trás, esquerda, direita. Girávamos. O som ocupava todo o ambiente. A energia era surreal. A música rolando e eu nem tinha conseguido ver o palco. Só sentindo. Sentindo ao extremo. Pulando, gritando, cantando, suando, chorando. Em êxtase! Acabou a primeira música, ela falou conosco e já emendou mais uma e mais outra e mais outra. O som muito mais pesado e gostoso do que o rotineiramente editado midiático. Eu nem sabia se queria fechar os olhos e sentir ou se queria os olhos bem abertos para registrar. Vivi tudo intensamente! Tirando as vivencias maternas, essa foi sem dúvidas, a melhor coisa que já aconteceu na minha vida! O momento mais intenso e delicioso que vivi! Eu estava plenamente realizada e entregue! Quase no final, o corpo exausto, me abriguei entre três casais heteros que curtem o show agarradinhos e grudados no chão feito muralha. Pude recuperar um pouco o fôlego. A despedida foi sofrida. Não queria que acabasse! Felizmente teve um bis e consegui ultrapassar as barreiras e fiquei pertinho do palco. Meus olhos incrédulos puderam ver de pertinho minha deusa. Poder viver um momento incrível e ter ciência do quão incrível ele é, no momento presente, é um presente fantástico!  

Tudo aconteceu exatamente como deveria ser. Agora entendo que realmente eu precisava ter ido sozinha. Não me preocupei com nada nem ninguém e me permiti viver aquilo intensamente. E mais, pude abraçar minha solitude, reconhecer meu poder e minha força, me conectar aos meus próprios desejos e me sentir poderosíssima! Nem que por poucas horas…. Foi absurdamente potente e importante para mim! 🖤

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29/04/22

Era um dia comum. Mas o que é um dia comum? Nunca é apenas um dia comum. Só vamos perceber se foi um dia simples ou extraordinário depois dele ter acabado.

Era um dia normal. Tudo acontecia na frequência adequada, calma. No meio da tarde uma reunião de pais na escola do filho. Escola nova do filho. Ele no sexto ano do ensino fundamental 2. Agora separados por ciclos, ele precisou sair da que ele já estava habituado. Escola em que eu estudei. Da primeira série ao terceiro ano do ensino médio. Todas as minhas lembranças escolares são dali. Ele com certa dificuldade de adaptação pelo combo escola nova/ amizades novas/ ciclo escolar novo/ pós dois anos de pandemia sem contato com pessoas fora da bolha/ introversão/ pré adolescência. Ufa! Se tivesse dado tudo certo, com certeza estaria tudo errado por baixo do pano. Aliás, isso é importantíssimo! Reconhecer que tem algo errado, algo que precisa de conserto, de ajustes, de reparo, de dedicação para poder fluir. Nisso de reconhecer as limitações, as particularidades de cada um, nossa geração, com fé, se encaminha para dar o acolhimento que tanto desejamos e não tivemos no passado. Cada colo que ofereço para minhas crianças, me rasgam por não ter tido colo também. Cada ferida que os ajudo a cuidar, me ferem por não ter tido ninguém enxergando as minhas. Cada dor deles, me dói em dobro por não curado as minhas e por não ter podido evitar as deles.

Era um dia percorrendo um caminho habitual. Abrindo o leque das infinitas possibilidades, singularidades, pluralidades, comecei observar também as belezas corriqueiras, cotidianas. Eu queria ter como fotografar as belezas que enxerguei no caminho. A parede cheia de trepadeiras, os homens trabalhando em uma obra para consertar um encanamento jorrando água no meio do concreto, as linhas bem desenhadas da lombada, a câmera de segurança redondinha de uma casa, o alinhamento do ponto de ônibus e uma fila de carros que seguia, o cone de trânsito, o telhado do conjunto de casinhas, as nuvens bem escuras encobrindo as nuvens claras, o horizonte de construções aleatórias e sincronizadas, o semblante terno do rapaz empinando pipa sozinho no meio da rua (o que será que estava passando na cabeça dele?). Por que será que fiquei sem jeito de oferecer ajuda para a moça que abria o portão com uma bebezinha no colo? Por que não vemos tantos detalhes no cotidiano? A vida é incomensurável!

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28/04/22

Estava voltando dos Correios quando passei por uma calçada, com uma rampinha de elevação. Ali por baixo passa um córrego. Tem uma muretinha de proteção de cerca de 1m de altura. Era por esse caminho que eu passava para ir e voltar do prézinho quando eu tinha uns 5 ou 6 anos. Isso há 30 anos. Fazia tempo que eu não passava por ali. No momento em que meus pés subiram a mini rampa, voltei naquele tempo passado. Fechei os olhos, pude sentir. Sem hesitar, me aproximei do muro. Toquei com as mãos e o coração todinho. A vista nem é bonita. Nem o sentimento. Uns segundos de nostalgia boa. O resto da tarde com tristeza nos olhos. Eu quis muito me aproximar e sentir aquilo. Foi por impulso mas foi genuíno e verdadeiro. O que veio depois foi a lembrança amarga de como eram todas as vezes, todos os dias que passávamos por ali. Minha mãe sempre brigava. Eu e meu irmão tínhamos curiosidade, como toda criança (ou toda pessoa!?) normal. Era uma calçada diferente. Tinha cheiro diferente, textura diferente, altura diferente, largura diferente. Ela só gritava para prestar atenção, ir rápido, não olhar. Eu não conseguia entender. Precisava saber o que tinha ali, por que era assim, por que não podia olhar. Eu não podia sequer questionar. Ela tinha o hábito de dar tapa na minha boca. Com uma força absurda que só de lembrar, sinto o gosto de sangue misturado com minha saliva. O gosto que senti hoje, é aquele de quando a gente vomita e não tem mais nada para sair, só o azedume da bile. E os gritos na mente de “Sai dai”, “Se encostar ai vou te arrebentar”, “Se você se sujar vou esfregar a roupa na sua cara”. Não era por zelo, por cuidado. Não era mesmo! Aquela muretinha que outrora era gigante, hoje, hoje mesmo que permanecendo igual, parecia um rodapé. Mentalmente peguei eu criança no colo e me mostrei a vista. Me expliquei o que era um córrego. Me orientei para tomar cuidado. Me abracei e me pedi para silenciar os gritos (que até hoje ouço em vários momentos, em muitos momentos!) que não eram sobre mim. Eu não era a culpada. Eu não sou a culpada!

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06/10/21

Eu só chorava. A gestação inteira. Dormia chorando, acordava chorando, trabalhava chorando. Os olhos escorriam o tempo todo. Quando vinham as crises com soluço, me escondia no banheiro. Evitava as pessoas. Não usava elevador, as escadas são o paraíso. Na rua e no transporte público, as pessoas não se enxergam e isso me salvava. Eu saia do trabalho e parava na igreja do lado da estação, ali podia chorar em paz. Ou no shopping só sentar quietinha sozinha no meio da multidão. Passava horas enrolando o tempo pra poder chegar em casa já na hora de dormir. Uma conexão insana com a barriga. Nós duas contra o mundo!


Eu tinha 17 anos. Estava no ultimo ano do ensino médio. Tudo o que eu queria era crescer, sair de casa. Infância difícil. Pai alcoólatra. Zero afinidade com a mãe. Irmão machista. Eu era invisível! Já trabalhava. Tinha um relacionamento meio abusivo de três anos. Era bom na maior parte do tempo. Eu o amava e ele me idolatrava. Me sentia verdadeiramente amada, como nunca mais senti. Mas era passarinho na gaiola. E eu queria o mundo. Foi a primeira vez que segui a razão mesmo com o coração partido por partir um coração. Queria ser dona do meu próprio nariz! 
Logo em seguida, no trabalho, recebi um bilhetinho que tinha um admirador secreto. Aquilo me instigou. Deu medo e curiosidade.  Bilhetinhos e mais bilhetinhos. Conheci. Me apaixonei. É tudo perfeito para olhos apaixonados. Resolvi curtir o momento. Mergulhei de cabeça! Mas era raso. Me quebrei inteira! Nunca mais quis curtir o momento! 
Foram lindos três meses. Até que simplesmente sumiu. Sem dizer nada. Trocou de trabalho. Parou de responder mensagens. Não atendia as ligações. E era aqui que devíamos ter nos desencontrado pra sempre. Não fosse pela sementinha que ja estava plantada. 


Insisti por uns dias. Me culpei. Aceitei. Atrasei. Me assustei. Adiei o curso. Congelei a ideia da faculdade. Neguei. Neguei. Neguei. Decidi fazer o teste. Liguei mais uma vez. Nada. Que momento horrível fazer o exame. Liguei mais uma vez. Não queria pegar o resultado sozinha. Liguei. Peguei o exame. Liguei. Não abri. Liguei. Resolvi abrir sozinha no meio da rua. Liguei. Então desmoronei. Cai prostrada na calçada. Celular foi pra um lado, bolsa pro outro. Chorei em posição fetal ali por umas três horas. Até hoje quando passo naquela rua, vejo a cena e queria voltar no momento pra me pegar no colo… Depois de umas duas semanas convivendo sozinha com aquela informação, decidi enviar uma carta, sim uma carta, contando pra ele. Pedindo pra me ligar para conversarmos. Uns dez dias sem resposta, precisei contar em casa. Sem coragem. Sai pro trabalho e deixei o exame positivo na mesa com um bilhetinho pedindo desculpa. A noite fui bem acolhida, graças a Deus. A família dele que abriu a carta. A família que fez ele aparecer. Foi ali que coloquei meu eu no bolso e comecei viver pela nova vida que estava por vir. Eu não queria mais ter contato com ele mas não era mais por mim. Ele é família do meu bebe também. Como o amava, aceitava algumas migalhas de afeto esporádico. Não pressionava, queria que estivesse comigo por querer estar comigo e não porque todos em volta achavam que devíamos ficar juntos. Tentei a todo custo silenciar meus sentimentos pois a prioridade da minha existência passou a ser outra. 


Recebi apoio. Muita ajuda com enxoval. Não do pai. De outras pessoas. Fiz plano de saúde. Acompanhamento. Organizei as coisas, reformei a casa. Tudo sozinha com um salário mínimo. Foi Deus! Meu irmão se revelou um ótimo companheiro. Ia em algumas consultas e exames. Eu sempre avisava o pai. Esperava. Ele nunca apareceu. Nem naquele que se descobre o sexo. Esse me magoou profundamente. Foi ali sozinha que escolhi o nome. Gerou briga depois porque ele queria outro, o avô queria outro. Pouco me importei. Nesse dia passei a ser a pessoa que não se importa com a opinião de quem não estava presente quando deveria. Até hoje sou assim. Dou a chance de participar. Me deixou resolver sozinha? Nunca mais fale sobre o assunto! Ele aparecia em casa quando queria. Falava que ia, não ia. Atendia vez ou outra. Nas últimas semanas decidi não ligar mais. Deixar ele descobrir do parto no tempo dele. Fui bem criticada por não compreender que era difícil pro coitadinho. 

Então no dia 06 de Outubro, com 39 semanas e 5 dias de gestação, entrei em trabalho de parto. Já sabia que não teria o medico que me acompanhou pois ele atendia muito longe de onde eu moro e sem carro, ficaria impossível chegar. Não queria agendar uma cesárea. Queria esperar o tempo dela, a hora dela, respeitar o processo dela. Julgamentos e mais julgamentos. Não conhecia ninguém que teve parto normal. Um absurdo querer seguir o fluxo da natureza! Não liguei pra avisar o pai. Não suportaria não ser atendida naquele momento. Minha queridíssima vizinha me deu carona pro hospital. Cheguei lá as 21h. Fui examinada e liberada. Ainda demoraria e não podia ficar esperando lá. Quando não se tem conhecimento, as contrações são desesperadoras. Um medo irracional. Voltamos pra casa. As dores continuavam. Virou o dia. As 3h da madrugada chamei a vizinha novamente. Seguimos. Examinada, dispensada. Fiz meu primeiro barraco da vida e decidi não sair dali enquanto não nascesse. Consegui ser internada. Uma noite toda de dor. Minha mãe do lado insistindo pra eu pedir cesárea, insistindo pra eu ligar pro pai. Eu só queria me concentrar na dor e torcia para que aquilo passasse logo. 


Dia 07 de Outubro de 2.003, as 10:50h da manhã, Giovanna chegou ao mundo. Até hoje não consigo descrever aquele momento. Incondicional acho que é a palavra. Inexplicável! Eu só queria que fossemos nós duas ali e pra sempre. Mas entendia que ela não era só minha. E isso me despedaçava. Ali e até hoje. Minha mãe de cara já se conectou a ela. Como nunca foi comigo. Não tenho ciúmes, fico feliz por elas terem isso. Meu irmão também. Uma afinidade que nem se nomeia. Giovanna tem isso. Cativa todos ao seu redor. É luz, amor e alegria. Eu não conseguiria viver sem deixar ela ter contato com a outra parte da família. É um direito de todos. Mesmo com o alto preço que pago por isso. Não é sobre mim. 


Nossas dores são nossas. Nossos aprendizados são nossos. Nossos filhos são deles mesmos! Precisamos estar na retaguarda dando suporte e combustível. Voa minha passarinha! Voa! Você já nasceu pronta! E hoje é um espetáculo! Te amo Gi! 🖤

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05/10/21

Passei muito tempo querendo deixar de amar. Agora estou empenhada em parar de odiar.

Ele é a PIOR pessoa da minha vida. A personificação exata do termo ‘lobo em pele de cordeiro’. Doce, simpático, prestativo, alegre, brincalhão, divertido. Voz calma e suave. Amigo de todo mundo. Injustiçado. Vítima. Coitadinho. Não sabe falar não. Isso o leva a dizer tudo que a outra pessoa quer escutar. O que faz consequentemente não condizer o que fala com o que faz. Responsabilidade afetiva passa longe. Pode ser que a gente namora até hoje pois não sabe finalizar as coisas… Deixa aberto pra não se comprometer. Pra não ter culpa. Responsabilidade. Responsabilidade… Cinco anos a mais que eu, há dezoito era imaturo pra ter responsabilidade. Hoje continua igual. Acho que tenho inveja da leveza que aproveita a vida enquanto me massacrou com o peso da responsabilidade dupla que precisei carregar. Nunca pressionei, nunca cobrei. Eu só queria honestidade. Nunca segurou minha mão. Impossível sermos amigos. Infelizmente. 


Giovanna tem tanto desse pai. Isso me assustava. Hoje agradeço. Se ela só tivesse absorvido todos os meus fantasmas não teria se tornado a mulher leve e divertida que é hoje. Apesar de. 

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Minha chavinha virou!

Tudo faz parte do processo. E o meu foi longo. Foram 5 anos de luto. Um pouco mais se contar que não começou no fim e sim quando descarrilhou aos poucos bom tempo antes. 

Na verdade pode ter sido bem antes, quando a maternagem me atropelou. Minha filha vai completar 18 anos mas eu já completei 18 anos sendo mãe pois pra mim contam os 9 meses antes do parto também. 

2021 começou cheio questões internas. No decorrer dos meses eu me transformei. Nesse período li quase 50 livros e destaco esses 3 que gostaria de recomendar fortemente. 

Dias de abandono – fala sobre divórcio. Sobre a bagunça que fica. Sobre se dar o tempo de processar a nova realidade e só depois de se curar, recomeçar. 

Talvez você deva conversar com alguém – é divertido e leve sobre auto conhecimento. Riquíssimo! Aquele livro abraço, acalento! 

O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido e seus filhos ficarão gratos de você ler – humaniza as pessoas. Da mecanismos de analisar rupturas e estimula repara-las. Bagunça muita coisa pois mexe em feridas. Também da esperança de relações melhores a partir de reflexão e boa vontade. 

Nosso crescimento é interno, pessoal, intransferível. Bom lembrar que cada um ao seu próprio tempo. E que a linha não é reta. Tem muitos altos e baixos. Tropeços. Erros e acertos. Não importa a velocidade e sim a constância. 

Eu estava vivendo, ou melhor, sobrevivendo, meio que no piloto automático. Peguei todas as obrigações da vida, toda carga pesadíssima e abracei. Analisei o que tinha, vi quem caiu fora, vi que só podia contar comigo mesma. Fiz o que tinha que ser feito. Doa a quem doer. E no caso, só doia em mim.  Não achei que merecesse compaixão. Apenas que devesse seguir. E assim o fiz. Guardei a Alinne no bolso e segui pelo bem geral dos que dependem de mim. Aprendi ficar confortável na minha casca. Tive alguns raros dias bons. Até que… A Alinne guardada, eclodiu! 

Tive vontade de viver. Apesar de todos os pesares pesados. Não me cabe mais apenas sobreviver!  

Me reconectei com a Alinne de 16 anos. Era tão forte, destemida, obstinada. Cheia de desejos. De alegria. De vida. Abracei meu novo corpo. Prometi não mais o odiar. Trata-lo com carinho, respeito e gratidão. Redescobri sua grande potencia o levando pra jogo. Nunca tinha sido tão realizada com ele, mesmo quando ele estava em sua melhor forma, em qualquer forma. Não é isso que verdadeiramente importa. É o sentir! 

É de dentro pra fora! 

Eu me abri pro mundo. E o mundo se abriu pra mim. 

Façamos terapia! 

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22/04/21

Eu não arrumo minha cama todos os dias. Tipo copo meio cheio ou meio vazio, eu arrumo meio cheio. Assim considero. As vezes largo mão e passo dias só dando uma ajeitadinha antes de usar novamente. Outras, arrumo direitinho por dias a fio. Ora desisto por questionar o sistema, os motivos, se é o que eu quero mesmo ou o que esperam de mim. Ora me dedico por ser uma coisa que sou responsável, por mim e para mim, apenas. 
Hoje a tarde minha mãe estava ao telefone com minha tia e ouvi mais uma vez me criticando pois nunca arrumo minha cama. 
Agora a noite, meu caçula veio ficar comigo no quarto, deitou na minha cama, se acomodou bem e falou que adora minha cama pois está sempre arrumadinha. 
Larguei o livro que estava lendo. Parei por uns longos instantes sem palavras e refletindo… Sempre haverão muitos pontos de vista sobre a mesma história. Como bem disse a psicóloga pra minha menina essa semana: precisamos usar filtros. Filtros! 

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Pimenta

Eu sentei para almoçar. Quando preparei a primeira colherada, senti um cheiro muito forte de pimenta. Veio ardendo nas narinas e esquentou todo o rosto. Respirei fundo novamente e o gosto se alojou na minha garganta. Senti até adormecer a boca. Fechei os olhos e vi claramente o vidrinho de pimenta na mesa. Aquele que meu pai preparava com todo gosto, toda vontade e satisfação do mundo. Era uma coisa que ele amava e cultivava ferrenhamente. Vi ele preparando seu pratinho simples e robusto, sentando a mesa conosco e deleitando seu banquete singelo. 
Eu não gosto de pimenta. Eu não odeio pimenta. Eu fiquei feliz com as sensações que me corpo vivenciou sozinho, sem pimenta na mesa realmente. Sem meu pai ali. Sem meus filhos e minha mãe sentindo aquilo comigo. Aqueles que amamos nunca morrem! 
Lembrei desse poema e quero compartilhar: 
na hora de pôr a mesa, éramos cinco: 
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs 
e eu. depois, a minha irmã mais velha 
casou-se. depois, a minha irmã mais nova 
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, 
na hora de pôr a mesa, somos cinco, 
menos a minha irmã mais velha que está 
na casa dela, menos a minha irmã mais 
nova que está na casa dela, menos o meu 
pai, menos a minha mãe viúva. cada um 
deles é um lugar vazio nesta mesa onde 
como sozinho. mas irão estar sempre aqui. 
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. 
enquanto um de nós estiver vivo, seremos 
sempre cinco. 
José Luís Peixoto Em A Criança em Ruínas